Um reino
dividido contra si mesmo pode subsistir?
A resposta de
Nosso Senhor é negativa (Mc 3, 24). Um reino dividido contra si mesmo não pode
subsistir. Foi por essa razão que, no Horto das Oliveiras, o Salvador, entre as
gotas de sangue que pingavam de sua sagrada face, implorou: Pai santo, guarda
em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um
(Jo 17, 11).
Adianto que a
questão que tratarei tem um pano de fundo teológico, mas é mais prática, ‘pé no
chão’. Outro alerta: vou expor a minha realidade local diante das CEBs –
Comunidades Eclesiais de Base, se aproveitar e fizer sentido à sua, ótimo; se
não, paciência. E não vai ser uma visão otimista, embora adoraria fazer um prognóstico
positivo, mas, infelizmente, o quadro presente dá sinais de que a coisa não vai
bem e tende a piorar.
Em primeiro
lugar, o modo como as CEBs se estruturaram ao redor da “Celebração da Palavra”
com distribuição da Eucaristia é um tiro no pé da própria Igreja. Por quê? Não
é um exagero? Não, não é. A “celebração da Palavra” tenta fazer uma caricatura
da Santa Missa e, ao fim e ao cabo, a ‘lógica’ por trás é exatamente essa,
inclusive a ‘liturgia adaptada’ se inspira aí e, às vezes, não faz os ajustes
necessários entre o leigo e o padre, que são os falantes [1].
Antes de
prosseguir com a minha opinião, em que o leitor pode achar pertinente ou não,
aderindo ou não a ela, todavia, se é o Magistério quem fala, a situação é
outra. Vejamos qual é a posição da Igreja sobre o tema:
Na Instrução Redemptionis Sacramentum, o parágrafo
164 afirma que “as celebrações dominicais especiais, devem ser consideradas
ABSOLUTAMENTE extraordinárias” e o parágrafo 167 arremata:
“«De maneira
parecida, não se pode pensar em substituir a santa Missa dominical com
Celebrações ecumênicas da Palavra ou com encontros de oração em comum com
cristãos membros de outras [...] comunidades eclesiais, ou bem com a
participação em seu serviço litúrgico». Se por uma necessidade urgente, o Bispo
diocesano permitir ad actum a participação dos católicos, vigiem os
pastores para que entre os fiéis católicos não se produza confusão sobre a
necessidade de participar na Missa de preceito, também nestas ocasiões, a outra
hora do dia.”
Está mais do
que cristalino que essa confusão já acontece, não é? A Missa é rebaixada e
nivelada à celebração nas CEBs. Prossigo.
“Como temos poucos padres e precisamos
difundir o Evangelho, releguemos ao leigo que pós-Vaticano II assumiu um papel
relevante na evangelização”, diriam os adeptos. Aliás, prosseguem eles, “é uma
forma de tornar a Igreja mais acessível e menos ‘elitizada’”. [2]. Ou: “Ah, o
autor desconhece que há previsão canônica para esse tipo de atividade” [3], os
mais rígidos rebateriam.
É importante
ler as notas para compreender o texto – eu sei que é chato, porém é uma chatice
necessária. Responderei a essas questões.
a) Mas quais
são as consequências das CEBs como as conheço? A Igreja gasta rios de dinheiro
para formar padres. E como, infelizmente, o deus mamon tem ganhado espaço nos
corações, inclusive do clero (é trágico, eu sei e não sabe quanto lamento que
seja assim!), considero que seja oportuno frisar: a Igreja gasta rios de
dinheiro para formar padres que, em tese, receberam estudo para conhecer a
verdade (o casamento da filosofia com a teologia) e sabem transmiti-la ao povo,
acaba jogando isso pela janela quando “delega” dominicalmente a um
leigo a organização da celebração em concorrência com a Santa Missa. Por
exemplo, onde moro a Santa Missa “compete”, simultaneamente, no mesmo horário e
no centro da cidade com mais de dez comunidades com suas respectivas
celebrações. (a competição do ponto de vista espiritual inexiste, por isso as
aspas, um montículo não concorre com uma montanha);
b) Por que a
Igreja joga pela janela o gasto feito com os padres? Simples. Se a formação foi
instituída, desde o Concílio de Trento, para moralizar e organizar o clero, a
instituição vulgarizada da celebração repete o passado no sentido de que a
propagação do Evangelho é terceirizada para o laicato sem que este tenha
condições de fazê-lo de maneira adequada. Sofistiquei a resposta. Em outras
palavras, transfiro a alguém que não tem o devido preparo e ‘poupo’ o
preparado.
c) Por que o
leigo, em geral, não pode assumir essas funções? Superando o debate que é o
próprio do Magistério que estabelece a excepcionalidade (a exceção) como já
expus (releia também a nota de rodapé número 3). Agora explico o porquê o leigo
não tem condições de assumir essas funções como regra.
1 – Formação. Na maioria dos casos, os
leigos não têm uma formação adequada (não estou dizendo que há intenção de
ficarem ignorantes nos assuntos religiosos, é a realidade, lembram?);
2- Espiritualidade. O leigo não preparou
seu espírito durante anos ‘enclausurado’ no seminário numa vivência de
comunidade, com orações e num ambiente ordeiro [4];
3- Tupiniquim. A situação se agrava no
Brasil por ser um país prodigioso em analfabetismo funcional. Pesquisa da UnB
revelou que mais de 50% dos universitários são analfabetos funcionais, imagine
a composição dos ministros da Palavra que em sua maioria não tem o ensino
superior [5]. Em outras palavras, se nem os universitários estão habilitados a
ler e escrever com justeza, quem dirá os não universitários num contexto em que
mais de 70% da população não abriu um livro sequer em 2014. Outra pesquisa, são
‘dados’ reais. A realidade nua e crua. Lembrando: Bíblia significa livros (do
grego “biblion”). 73 livros para ser exato. Uma biblioteca muito modesta.
4- Tempo. A vida moderna suga nossas horas
e, às vezes, achamos que um dia é pouco para cumprir nossas atividades. Sem
contar as distrações que redes sociais, séries, programas de TV etc. absorvem.
O padre é separado do povo para o povo. Essa ‘separação’ inclui tempo consigo,
em comunidade e com Deus. Por isso ele não trabalha como um profissional
mundano, embora as ‘férias coletivas’ dadas em Janeiro sinalizem o contrário
(evito a polêmica por hora). O leigo dispõe de pouco tempo. Exigir que supra
uma função que deveria ser do sacerdote é uma injustiça. O leigo deve anunciar
o Evangelho, em primeiro lugar, na Igreja doméstica (família) a partir daquilo
que recebeu da ‘Igreja pública’; além de ser ‘sal e luz’ no mundo, no seu
trabalho, no seu dia a dia. Estou falando de prioridades, não de esquemas
fechados.
d) Por que os
bispos/padres favoráveis ao modelo atual não percebem a furada em que se
meteram? ‘Foge da dor e busca o prazer’. É assim que opera nossas reações
muitas vezes. É claro que quando o leigo assume atividades essencialmente
ligadas ao sacerdócio, o padre fica aliviado, desocupado. Será totalmente
verdadeiro isso ou apenas parcialmente? Pensem na multiplicação de ‘picuinhas’
que dezenas de comunidades espalhadas na mesma cidade geram. Fulano da
Comunidade A disse isso ou aquilo, o da B fez o oposto e blá, blá, blá (fico
cansado só de imaginar). Um resultado que a CEB propõe – reduzir a carga
laboral do padre – no lugar de ser uma solução, acaba multiplicando os
problemas. Tem a ver com o que Nosso Senhor falou: quem procurar salvar a sua
vida, vai perdê-la (Mc 8, 35). Quem procurar se livrar da dor, irá aumentá-la.
e) Como fica o
rebanho do Senhor? Ainda que não tenha sido um resultado previsto, o fato de
colocar a celebração da Palavra como regra, gera uma equiparação entre esta e a
Santa Missa. Essa equiparação é uma erva daninha, aliás, é o joio. Sabemos bem
quem cultiva esse espécime. Por quê? A resposta é simples. Afasta as ovelhas do
convívio com o pastor e, como visto na letra C, coloca um cego para guiar outro
cego, melhor dizendo, uma ovelha para guiar outra ovelha. Mas quem defende a
ambas do lobo? Eu sei: vão dizer que há muitos padres que são lobos em pele de
cordeiro. De qualquer modo, é importante que as ovelhas estejam em contato com
o pastor [6]. Como vão cumprir o pedido do Papa de que o pastor tenha o cheiro
das ovelhas, se o próprio pastor colocou cada grupo em um canto diferente?
Quando o próprio pastor aprova a ideia de que separadas, engordam mais? Repito:
ainda que o pastor seja uma réplica de Judas, é necessário que as ovelhas
estejam ao redor dele, porque até uma pessoa má, com coração de pedra, faz
coisas boas às vezes e, nas suas torpezas, pode acertar sem vontade, afinal,
passou anos ouvindo coisas certas na sua formação (volte à nota 4), e, numa
decisão ou outra, pode agir corretamente (já dizia Machado de Assis que relógio
parado acerta a hora duas vezes). Sem contar que existe a graça do estado
clerical em que Deus tenta driblar esses pecados e vícios para que sua ovelha
não pereça [6]. Não nos esqueçamos: Jesus é o Bom Pastor. Bom. Bom. Bom.
Entenderam? Ele deixa 99 ovelhas farisaicas para buscar umazinha, a perdida, a
publicana, toda ferida e estrepada, mas que o procura com sinceridade e amor. “Oh,
a bondade de Deus é indescritível!”, diriam os santos.
f) O quê o
autor humildemente sugere? A solução é simples e não se realiza sem sofrimento.
Em primeiro lugar, precisamos quebrar o costume torto que se formou AOS POUCOS
para não escandalizar ninguém. Também não adianta fazer uma mudança drástica e
danosa aos espíritos mais apegados. O que tem que ser feito com urgência: dar a
Deus o que é de Deus.
1- TIRAR todas
as celebrações da Palavra dos locais em que há meios de se ir à Santa Missa com
relativa facilidade como na cidade (não podemos colocar um fardo pesado nos
outros) do DOMINGO. Os antigos já sabiam: domingo é dia de Missa.
2- REMANEJAR
as celebrações da Palavra para outro dia da semana para que percam a importância
indevida que receberam (quebra de costume) como o sábado. Seria “o dia” da
celebração para desocupar as pessoas para o Domingo.
3- MANTER aos
domingos as celebrações da Palavra nos lugares distantes como distritos e zonas
rurais;
4- Como
consequência, os padres precisariam celebrar mais de uma Missa na Igreja Mãe (por
exemplo: manhã e noite no domingo ou sábado à noite com liturgia dominical e
domingo de manhã) para que os mais variados tipos de ovelhas afluam ao aprisco
com certa acessibilidade de hora;
5- Deixar as
CEBs instaladas para: catequeses, encontros formativos, círculos bíblicos,
festividades dos padroeiros (ótima ocasião para fortalecer o espírito da CEB),
missa mensal para o padre animar o trabalho comunitário etc. Essas ações
funcionariam como uma espécie de isca naquela realidade menor para um horizonte
maior, mais nobre e belo; E quem sabe usar os salões para festas e eventos com
orientações religiosas, (almoços comunitários), tudo isso é bom e ‘agrega
valor’; Não nos esqueçamos de que Nosso Senhor foi acusado de ‘glutão’, embora Ele
fosse para os lautos banquetes, não com o intuito de se fartar de comidas e
bebidas deliciosas, e sim, para “pescar” os pecadores que estavam lá se
fartando de comidas e bebidas deliciosas. Imaginem os nós nas gargantas com pedaços
de carne durante um discurso instigante de Jesus? Lágrimas misturadas aos vinhos...
Devia ser engraçado e inspirador.
5- Aproveitar
depois os ministros que ficariam “ociosos” para a formação e distribuí-los nos
movimentos/pastorais e dedicar mais tempo e rigor aos ministros necessários
(zonas rurais) para suprir as deficiências que, muitas vezes, são maiores neles
dos que estão integrados na área urbana. Em miúdos, dar atenção a quem precisa
de mais atenção.
Um efeito
colateral não percebido do excesso de ministros é o esvaziamento das pastorais.
Geralmente, quem assume o ministério da Palavra tem espírito de liderança e
poderia fazer um bem enorme coordenando ou atuando ativamente numa pastoral/movimento,
porém, é “abduzido” para a função com mais status (não podemos ignorar como a
vaidade orienta nossas escolhas, mesmo que justas) e, ao mesmo tempo, mais
fechada em si mesma que é a celebração. É possível que pense que ao “celebrar”
em uma horinha já cumpriu seu dever na Igreja e que os outros se mobilizem,
porque ele já fez sua parte.
Bom, essa é a
minha reflexão para que as coisas melhorem na Igreja. Deixo aqui minha semente
e rezo para que caia em terra boa, aquela que produz fruto e que agrada ao
agricultor.
Para aprofundar, leia o Diretório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero, clicando aqui.
Notas
[1] Vou
superar as polêmicas ao redor de uma concepção equivocada do sacerdócio e da
sua centralidade no mistério eucarístico.
[2] Isso não
tem nada a ver com o pedido do Papa da Igreja sair de si e ir para as
periferias, ok?
[3] Ótimo. Eu
sei que existe, mas se vamos recorrer ao Código de Direito Canônico, recorramos
à integralidade, não a uma parte conveniente. E se vamos observar as diretrizes
magisteriais, que seja in totum (no
todo). No entanto, o que vou fazer é exatamente o que critico: ignorarei as
disposições oficiais da ‘Igreja Romana’ que não conhece a realidade da ‘Igreja
Latina’ (numa insurgência contra o adágio ‘Roma
locuta est, causa finita est’, porque não sei se os europeus sabem: a
oficialidade não é vista com bons olhos aqui, há até uma antipatia violenta). É
um ‘latino’ quem fala a partir de sua ‘realidade’, da sua ‘práxis’. É quase o
Éden de alguns teóricos ‘libertadores’, não é? Reivindico a minha legitimidade
então. Pois bem. Sigamos.
[4] Estou
sendo idealista, perdoem-me, mas é feio dizer que existem hoje métodos de
testar a vocação como lançar os vocacionados na ‘cova dos leões’ para ver se
querem o ‘mundo’ ou ‘Deus’ e isso é o publicável, há coisas piores...
Desculpem-me, mas ouço desde novo que preciso ser ‘crítico’ e estou fazendo o
melhor que posso. Quem empreende isso desconhece a natureza humana decaída.
Preciso injetar heroína para saber que ela faz mal e só então passar a
combatê-la ‘com propriedade’? E se já havia lutas interiores somo mais uma,
qual seja, o desejo de voltar a usar a droga? Nem o diabo pensaria em algo tão
eficaz para viver corretamente! Parabéns aos reitores!
[5] Talvez
seja acusado de elitismo injustamente, mas eu me defendo dizendo que é preciso
saber ler e escrever corretamente para entender as nuances que os textos
sagrados possuem, são mais camadas de sentido que as da cebola, a menos que
queiramos repetir o erro de um pastor protestante que onde estava escrito
adúltera (com acento), leu adultera. E adulterou com a fiel “a pedido de Deus”
(sic), teve inclusive um dilema se devia ou não, mas era o que pedia a Palavra
(sola scriptura). Logo, se não entendo bem a Palavra, como cumpro meu mister?
[6] Se o padre
não está em “estado de graça” (comete pecados graves e não os confessa), ao
menos, existe a “graça de estado” em razão de seu sacerdócio. O exemplo mais
notório é o do Sumo Sacerdote Caifás que, não só tramou o julgamento do Senhor
no Sinédrio (pecado gravíssimo, destruindo o “estado de graça”), como também
profetizou, devido à graça de estado, que seria melhor que “um só morresse em
lugar do povo” (Jo 18, 14). Em outras palavras, os homens, mesmo maus, cumprem
a vontade Deus, conscientes ou não disso.