Dom
Héctor Aguer – Arcebispo Emérito de La Plata
Uma das fantasias ou mitos pós-conciliares é afirmar uma
oposição entre estudo e pastoral: dedicar-se ao estudo, à investigação
filosófica ou teológica, o ensino dessas disciplinas e as publicações, não
seria “pastoral”. Na realidade, ocorre de modo recorrente que o que consideram
“pastoral” é uma estupidez [1] inconsciente, um ativismo sem fundamento.
Os seminaristas são enviados às paróquias muito cedo, com a
consequente deterioração e adiamento do estudo; isso prejudica a formação que
deveria ser ministrada no Seminário, e logo se implanta a desorientação na vida
sacerdotal. O estudo, no processo de formação ao sacerdócio, deve ir junto com
a oração, o silêncio e a separação da pressa e da agitação “pastoral” (caso
queira se chamar desse modo). Este tem sido um critério tradicional na Igreja;
um critério que o Concílio Vaticano II acolheu em seus decretos: Presbyterorum Ordinis, sobre o
ministério e vida dos presbíteros e Optatam
totius Ecclesiae renovationem, sobre a formação sacerdotal.
Esses desvios, pelo que se acostumou chamar de “espírito do
Concílio”, provocaram que poucos seminários permaneçam com uma formação robusta
e profunda. Veneráveis casas de formação ao sacerdócio que, em outros tempos,
contaram com brilhantes mestres, de sólida preparação filosófica e teológica, e
portanto, de delicado empenho pela salvação das almas, hoje estão divididos
entre o raquitismo, a agonia e o mais do que provável fechamento, a curto
prazo. A “pastoral” acabou eclipsando, e até banindo o Pastor.
Essa falsa oposição entre estudo e pastoral tem levado,
também, como temos visto recentemente, ao fechamento de seminários prósperos em
vocações. Quando eu era seminarista, no Seminário da Imaculada Conceição de
Buenos Aires, formavam-se jovens de todo o país. Cada um podia escolher
livremente o seminário no qual desejava se preparar para o sacerdócio. Porém,
depois do Concílio Vaticano II, produziu-se uma irreparável divisão na Igreja.
Muitos seminários ficaram presos em posições progressistas. Uns poucos, ao
contrário, assumiram o estilo tradicional, adequado às novas circunstâncias. E
tiveram que suportar inúmeras dificuldades, causadas pela oposição da maioria;
foram caluniados e acusados de não
terem incorporado as novidades do Concílio.
Da minha
parte, tanto como Reitor do Seminário Diocesano de São Miguel, que o bispo
dessa diocese me pediu para organizar e, depois como coadjutor durante um ano e
meio, e em meus posteriores 18 anos como Arcebispo de La Plata (fui o sétimo),
tenho comentado incansavelmente os documentos do Concílio. Lamentavelmente, o
progressismo mais intenso ou mais tênue invadiu, de maneira geral, a vida da
Igreja; com consequências gravíssimas que se fazem notar: seminários vazios ou
quase vazios, congregações religiosas destruídas, sem vocações; e desorientação
e divisão entre os fiéis.
Permanecem
bispos, é certo, que se preocupam seriamente com seus seminários – que são
considerados com sabedoria como o “coração de uma diocese” – e que, com a
colaboração de bem escolhidos e preparados formadores, empenham-se em formar
pastores segundo o Coração de Cristo, e não funcionais conforme o espírito do
mundo. E que, uma vez ordenados, enviam sacerdotes que reúnem os requisitos
correspondentes para se especializar em universidades romanas ou em outros
claustros europeus de prestígio. Ali têm plena disponibilidade para os estudos,
não fazem pastoral, ou seja, não se integram em alguma paróquia ou movimento,
simplesmente celebram a Santa Missa em uma casa vizinha de religiosas. Como se
vê, plena e variada ocupação pastoral.
Lamentavelmente,
há outros bispos que professam o bispo que opõe estudo e pastoral. As
consequências são, em não poucos casos, deploráveis. Sem uma sólida preparação
se constata como não poucos presbíteros são devorados pelo mundo e a própria
pastoral acaba se desmoronando, frequentemente ao redor de dolorosas deserções
e até escândalos...
A segura,
ampla e profunda formação intelectual, obtida como fruto de anos de estudo,
assegura a séria dedicação à ação pastoral direta, que adquire sentido de
inspiração graças a uma clara, sólida e iluminada dimensão intelectual. O mito
pós-conciliar da oposição tem causado enormes danos à Igreja; várias gerações
sacerdotais, carentes de preparação intelectual, confundiram aos fiéis, ou
pior, os extraviaram com doutrinas extravagantes, episódios de teólogos que não
respondem à grande tradição eclesial, ou os deixaram desamparados diante de
todos os erros do mundo moderno. O pastoralismo é relativista e seu populismo
falso e prejudicial para os fiéis.
Há que
ler de novo os Evangelhos, para reconhecer que Jesus não só anunciava a vinda
próxima do Reino, e sim, que ensinava uma doutrina. Os Apóstolos, como vemos
nas Cartas de São Paulo, concederam lugar importante à dimensão doutrinal, contemplativa
e orante da vida cristã. Essa vivência interior da doutrina da fé permitia
reconhecer os erros e combate-los. Tal o encargo de Paulo a seus discípulos,
por exemplo, o que lemos na Segunda Carta a Timóteo:
“Eu te
conjuro em presença de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os
mortos, por sua aparição e por seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e
inoportunamente, repreende, ameaça, exorta com toda paciência e empenho de
instruir. Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da
salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades,
ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas.
Tu, porém, sê prudente em tudo, paciente nos sofrimentos, cumpre a missão de
pregador do Evangelho, consagra-te ao teu ministério” (2Tm 4,1-5).
Essa admoestação do Apóstolo se
dirige, assim devemos entendê-la, aos pastores da Igreja de todos os tempos. E
como poderiam vivê-la, se não embasaram sua ação pastoral no estudo assíduo e
na oração, ambas exercidas pela fé?
Ademais,
para concluir, devo dizer que aqueles que se dedicam exclusivamente à
investigação da verdade, do ensinamento e da difusão mediante as publicações
impressas, que hoje adquirem nova modalidade de uma rápida circulação pela
internet, estão cumprimento estritamente pastoral. O populismo relativista é uma
calamidade que deve ser superada.
Uma
amostra superior da reputação do que expressei se encontra no modelo que é a
obra de Joseph Ratzinger (Bento XVI); hoje, uma vez mais, ferozmente caluniado
pelos inimigos de Cristo e da Igreja. Um grande teólogo, que dedicou sua vida à
investigação da verdade e do ensino universitário, chega a ser Pastor da Igreja
inteira, que a guia com decisão à busca de Deus, já que somente Ele assegura a
sobrevivência do homem. Um teólogo humilde, silencioso e orante que se tornou
Pastor exemplar, explica o que deve ser concebido como autenticamente pastoral.
A inspiração de Bento XVI está na obra de São Bento expressada na Regula Monachorum, o
tríplice compromisso cotidiano de oração, estudo e trabalho.
+ Héctor Aguer
[1] No
original, “macaneo inconsistente”, o que conforme nota explicativa seria algo
similar a “andar muito ocupados com bobagens”.
Fonte:
https://www.infocatolica.com/?t=opinion&cod=42638
***
A crítica de Dom Héctor Aguer,
guardadas as devidas proporções, tem a sua pertinência. Só gostaria de traçar
algumas considerações para situá-las melhor no contexto cultural do Brasil. A Ratio universal, atualizada a pedido do
Papa Francisco em 2016, quando se refere à formação intelectual possui uma
chave de leitura, que está na alínea b do parágrafo 186, qual seja:
“186.
Embora considerando a diversidade dos métodos, o ensino deverá garantir o
prosseguimento de certos objetivos: [...]
b. realizar a unidade e a síntese da
formação intelectual, através da recíproca harmonia entre o estudo bíblico,
teológico e filosófico; em particular, deve-se ajudar os seminaristas a ordenar
e coordenar os conhecimentos, superando o risco de estes, se aprendidos em
estudo fragmentado, formarem um mosaico não orgânico e, logo, confuso”.
Nessa perspectiva, o ensino
eclesiástico, em linhas gerais, padece de um mal sistêmico e crônico: a
fragmentação. O seminarista, desde o primeiro período da faculdade de Filosofia,
é inserido numa espiral confusa de ideias contraditórias, doutrinas mais ou
menos elaboradas, ideologias paradoxais que exigem muitas vezes o sacrifício da
sua vontade com a diluição do seu eu interior; sistemas filosóficos que são
grandes castelos do intelecto humano, mas feitos de areia por causa dos seus
erros nos princípios.
É uma grande plêiade de informações, cujo
resultado prático, na melhor das hipóteses, ao final do processo é a adesão ao
relativismo, consciente ou inconscientemente. E, no pior dos casos, ocorre o
fenômeno de desconstrução da sua identidade mais primária enquanto ser humano
considerado na sua totalidade (corpo, alma e espírito).
Não precisa acreditar em mim, acredite nos
seus próprios olhos: pesquise no Google Imagens “antes e depois da federal” e
analise foto após foto, caso queira identificar o aspecto estético desse
fenômeno no ensino público universitário. A depender do seminário, a aparente
ortodoxia será mantida no exterior... e meses após a ordenação, o “eu”
autêntico é libertado das cadeias que o aprisionavam e, às vezes, os formadores
são surpreendidos com a nova aparência que o neossacerdote adere quando o “jugo”
da disciplina é retirado.
O contato com a “realidade pastoral” pode
introduzir um elemento desagregador na formação intelectual, qual seja a de
contrapor teoria e prática de maneira incontornável. “Ah, qual é a utilidade de
se estudar esse pensador?”; “Padre Fulano não usa nada disso no seu agir”; “na
prática, a teoria é outra”; “a melhor aula é a que não tem”; “depois de padre,
tudo isso que estudou será em vão”; “o que importa é ser persuasivo” (uma repristinação
tardia dos sofistas). As máximas são variadas...
Em contrapartida, reforço que nada mais
prático que uma boa teoria. A boa filosofia, quando orientada pelo espírito da Fides et ratio, é capaz de ajudar o
seminarista a formar o seu ser [1]. O sacerdócio, mais do que um fazer, é um
ser. Ser como quem? Como Cristo. Tornar-se outro Cristo. A formação inicial,
como a Igreja designa os anos de formação seminarística, é um processo que tem
seu começo no batismo e durará a vida inteira (formação permanente na pastoral
presbiteral). É um longo itinerário de imitação a Cristo. A alma do sacerdote,
que participa ontologicamente do sacerdócio de Cristo, precisa exalar o bom
odor de Cristo, isto é, dar frutos de conversão e santificação.
Com isso se quer dizer, no “português
claro” que o estudo não é perfumaria. É parte integrante do se tornar sacerdote
conforme o coração de Jesus. O próprio Senhor pediu aos seus apóstolos que
ensinassem as nações “a observar tudo aquilo que vos prescrevi” (Mt 28,20), ao
passo que o diaconato é instituído pelos mesmos apóstolos a fim de que pudessem
se dedicar sem cessar à oração e ao ministério
da Palavra de Deus (At 6,4). Até onde consigo enxergar o seminarista terá de
enfrentar uma doença terrível – a tibieza – e o remédio consiste na oração
mental. A título complementar, recomenda-se a leitura do capítulo oitavo do “Prática
de amor a Jesus Cristo”.
E se o seminarista não trilhar esse
caminho, o que acontecerá? Dom Héctor já disse: será um padre arrastado pelo
que o Papa Francisco chama de “mundanismo”. Não terá condições de enfrentar o
mundo e sucumbirá. Poderá ser um excelente administrador, fará grandes obras
humanas, promoverá eventos, arrecadará fundos etc. Tudo construído sobre a
areia. Ou, na linguagem de Dom Chautard, será um apostolado sem alma, um
apostolado de um cadáver. A alma de todo apostolado está na vida interior, na
vida de amizade com Jesus (na videira ligada aos ramos ou na morada que o Filho
e o Pai farão na alma). E o padre em pecado mortal desprezou essa amizade e se tornou
um funcionário do sagrado (o conceito no Evangelho é de mercenário, cf. Jo
10,13) [2].
“Ninguém dá aquilo que não tem...”, “ninguém
ama aquilo que não conhece” ou “quem não vive como pensa, acaba pensando como
vive”. A sabedoria popular é cirúrgica muitas vezes. O que fazer diante desse
cenário caótico? Como fugir da mediocridade intelectual? Como sair do “senso
comum” acachapante? Não adianta esperar que a resposta venha de cima, de quem
tem poder de mando para reverter essa realidade. A solução está na reforma
silenciosa do indivíduo que, ao perceber esse mal, inicia uma investida contra
a fragmentação do ensino e conduz outros a buscarem a unidade do saber.
A pergunta ainda não foi respondida a
contento. O itinerário que deve ser trilhado começa por reunir as peças do mosaico
(do quebra-cabeça), isto é, tudo aquilo que o seminarista receber dos seus
professores como conteúdo, ele deve iniciar uma tentativa de integrar isso no
todo. Por mais falso que pareça aos olhos, aos ouvidos e a qualquer outro
sentido como aquela máxima de que “só existem interpretações sobre os fatos e
não fatos em si”, com a exceção do único fato embutido na frase. Ou de que
“tudo é relativo” com exceção da única verdade absoluta sobre o relativismo de
tudo o mais. Essa é a atitude de suspender o juízo.
O próximo passo consiste em entender que o
conhecimento está situado numa linha histórica com seus altos e baixos, com
avanços e retrocessos, com suas verdades e mentiras, com suas precisões e
indefinições. Portanto, cabe ao seminarista preparar o seu material, com suas
próprias palavras, em que ele vai integrando tudo isso numa cronologia.
Por exemplo, o seminarista do curso de
Filosofia que no primeiro período na disciplina de História da Filosofia Antiga
estuda os principais filósofos desse momento (Tales de Mileto, Heráclito,
Sócrates, Platão e Aristóteles etc.). Um ano depois, ao ter a disciplina de
Cosmologia, será retomado, de maneira isolada/fragmentada, isto é, sem inserir
num todo, os pré-socráticos com a questão do elemento primordial (arché).
De modo prático, o seminarista deve escolher
um livro de base para funcionar como fio condutor. Minha sugestão é “Noções de
História da Filosofia” do Pe. Leonel Franca, fundador da PUC-Rio, um gigante
esquecido em nossos dias, que escreveu com esse desiderato em mente. Depois ele
deve preparar o resumo com seus termos no papel para gerar identificação com o
que é produzido.
Em seguida, pode passar para o Word e tudo
de novo que for aprendendo ao longo da faculdade (inclusive os trabalhos
acadêmicos produzidos como avaliações, quais sejam: resumos, resenhas,
fichamentos, artigos e, por último, a monografia), ir acrescentando ali como
quem coleciona figurinhas no álbum, até formar um sistema orgânico. Ele mesmo
terá condições de assinalar o que é falso, duvidoso, verdadeiro etc., vendo a
partir dessa perspectiva mais global. Outra obra indispensável é “Como pensar
as grandes ideias” do filósofo da educação Mortimer Adler, que elaborou um
“dicionário” reflexivo e explicado com base nos clássicos do Ocidente [3].
Afinal, a vida de estudos ou intelectual,
nos moldes propostos e defendidos pelo Pe. Sertillanges, é como uma grande
sinfonia dos mortos. No início, os vivos entram para assistir à apresentação.
E, com o passar dos anos, assumem algum instrumento e começam a tocá-lo também.
A questão que se coloca é: nesse concerto com amplitude universal há uma
melodia perene cujo som é mais baixo que os ruídos e alvoroços emitidos pelos
inimigos do Belo. Todos tocam juntos, mas somente o ouvido treinado em
encontrar a harmonia será capaz de somar forças aos amigos do Belo. E, ao fim
da vida, serão convidados a participarem do cântico novo na eternidade e,
vencida a crise, encontrarão de modo definitivo a unidade do saber.
Notas
[1]
A boa teologia, quando orientada pelo espírito da Veritatis Splendor, é capaz de ajudar o seminarista a formar o seu
ser, além do mais, considerando a ênfase bíblica que muitos institutos
eclesiástico possuem, recomenda-se o estudo da Verbum Domini para contrapor o efeito danoso do método
histórico-crítico.
[2]
Para combater outro erro frequente que é o da intelectualidade desencarnada,
convém recordar uma preciosa lição do Papa Francisco: “Com frequência,
verifica-se uma perigosa confusão: julgar que, por sabermos algo ou podermos
explicá-lo com uma certa lógica, já somos santos, perfeitos, melhores do que a
«massa ignorante». São João Paulo II advertia, a quantos na Igreja têm a
possibilidade de uma formação mais elevada, contra a tentação de cultivarem «um
certo sentimento de superioridade relativamente aos outros fiéis». Na
realidade, porém, aquilo que julgamos saber sempre deveria ser uma motivação
para responder melhor ao amor de Deus, porque ‘se aprende para viver: teologia
e santidade são um binómio inseparável’”.
“São Francisco de Assis, ao ver que
alguns dos seus discípulos ensinavam a doutrina, quis evitar a tentação do
gnosticismo. Então escreveu assim a Santo Antônio de Lisboa: ‘Apraz-me que
interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não
apague neles o espírito da santa oração e devoção’. Reconhecia a tentação de
transformar a experiência cristã num conjunto de especulações mentais, que
acabam por nos afastar do frescor do Evangelho. São Boaventura, por sua vez,
advertia que a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da misericórdia
para com o próximo: «A maior sabedoria que pode existir consiste em dispensar
frutuosamente o que se possui e que lhe foi dado precisamente para o distribuir
(...). (§45 e 46, Gaudete et exsultate).
[3]
O curso de apologética do Prof. Dr. Sérgio Resende é uma excelente sugestão também: https://www.youtube.com/watch?v=R9gYJkEDFKk&list=PLpIu9PAU-TBmjdIDuz8FkTLeQ65B9QvlI