Embora se costume reclamar (com razão) que a tendência ideológica esquerdista reinante na academia leva a certo inaceitável silêncio acerca dos genocídios cometidos pelo comunismo, a verdade é que não é tão difícil, mesmo entre meios não conservadores, que se admita, ainda que de modo tímido e dourando a pílula, que tais atrocidades ocorreram. A própria narrativa do “deturparam Marx” pressupõe que o socialismo real trouxe algo de que alguém deveria se envergonhar (e, portanto, para salvar Marx, seria preciso afastá-lo disso).
Mais raro do que encontrar informação minimamente precisa sobre os genocídios comunistas é receber notícia das atrocidades e morticínios cometidos por liberais. Com efeito, o liberalismo cresceu nutrido pelo sangue de seus adversários, principalmente, dos que professam a fé católica (representantes por excelência da mentalidade pré-moderna). Lembro aqui apenas alguns exemplos:
I) As primeiras revoluções liberais na Inglaterra. A Inglaterra é a pátria primeva do liberalismo e também o berço de um cruel projeto institucional de extermínio dos católicos. Tudo começou com a Reforma da Igreja da Inglaterra, promovida por Henrique VIII (antes de tudo, para satisfazer sua volúpia). O odioso monarca exigiu à força a submissão de todas as autoridades civis e eclesiásticas à nova ordem religiosa, em que ele próprio passava a ser o chefe da Igreja. Todos os que se recusaram a apostatar de sua fé católica e de sua lealdade ao Papa foram executados por alta traição (entre os quais o mais famoso foi São Thomas More). Henrique VIII confiscou todos os bens da Igreja e tomou para si as vastas terras dos mosteiros, destruindo-os por completo (até os engenhosos maquinários inventados pelos monges para a agricultura, cujo aproveitamento teria adiantado a Revolução Industrial em duzentos anos), em ação que deixou cerca de quinhentos monges assassinados. Entre religiosos, ministros, bispos, abades, professores universitários e cidadãos, o número de mortos se aproximou de mil.
A tentativa de Maria I de restaurar o catolicismo fracassou devido à sua morte prematura. Sua irmã Elizabeth I (hoje unanimemente alcunhada na Inglaterra de “Good Queen Bess”) se notabilizou por concluir a obra iniciada por Henrique. Já proibida a prática pública da fé católica, ela, com as chamadas leis elisabetanas, baniu o culto católico secreto e perseguiu todos os que se mantinham fiéis à religião tradicional. Por crimes como assistir à missa, esconder um padre ou se recusar a assistir aos cultos anglicanos, milhares foram executados pelos tribunais ingleses do modo mais cruel. As missões jesuítas foram perseguidas, e muitos foram exterminados. Converter alguém ao catolicismo ou ordenar um sacerdote eram crimes de alta traição. Essa bondosa rainha também consumou a conquista da católica Irlanda, com um cerco que, somado a execuções de grandes fazendeiros, causou uma terrível fome, levando mais de um milhão de irlandeses à morte, um autêntico genocídio silenciado na história. A Inglaterra jamais se desculpou ou sequer se pronunciou sobre o evento.
Jaime I foi o responsável pela elaboração sistemática de uma teologia anglicana. Em polêmica contra os grandes teólogos católicos São Roberto Belarmino e Francisco Suárez, defendeu que a submissão à autoridade do rei é primordial em relação em submissão de fé à Igreja. A obediência primeira ao Estado supera a fé religiosa, princípio básico do anglicanismo e até hoje sustentado pelos liberais ingleses (mesmo pelos mais conservadores, como Roger Scruton). Seu neto Jaime II procurou reabilitar os católicos, permitindo-lhes o exercício de cargos públicos e militares e buscando a revogação de algumas das leis que lhes denegavam direitos básicos. A Revolução Gloriosa, em 1688, celebrada como a primeira revolução liberal, não foi senão uma reação do establishment anticatólico contra a fé do rei. Eis o primeiro ato liberal da história: uma revolta contra a liberdade religiosa concedida por um monarca católico.
Assumiu o trono, alguns anos depois, a rainha Anne, filha de Jaime II, responsável pela consolidação definitiva das leis penais contra os católicos. Aos súditos da Igreja de Roma era proibido adquirir armas ou terras, exercer o comércio ou qualquer tipo de empreendimento; não poderiam herdar de um protestante, e sua herança deveria ser obrigatoriamente repartida entre um número grande de herdeiros; era vedada a existência de qualquer instituição de ensino católica, e enviar crianças ou jovens a instituições católicas no exterior era crime de altíssima gravidade; católicos tampouco podiam lecionar em instituições protestantes; era-lhes vedado suceder ao trono ou tomar parte na Família Real ou exercer qualquer cargo público. Como se vê, uma legislação que nada deixa a dever às leis do nazismo contra os judeus. Durante séculos, essa situação foi vista com normalidade e defendida pela intelectualidade liberal inglesa. Com efeito, John Locke, considerado o patriarca do liberalismo, afirmava expressamente que a tolerância era devida a todos os indivíduos, exceto aos católicos, que são “naturalmente intolerantes”.
II) A Revolução Francesa. Poucos eventos recebem aplauso tão unânime quanto a Revolução Francesa. Com seu belo lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, é aclamada como a mãe dos direitos civis e políticos, dos direitos humanos e do constitucionalismo. É o grande marco do iluminismo progressista. Enquanto os altos ideais liberais eram proclamados em voz ressonante, o dia-a-dia concreto da Revolução foi a primeira cascata de sangue moderna, a primeira ancestral das tantas que jorrariam no século XX, pelas mãos de Hitler, Stalin e Mao.
Movidos por um mortal ódio anticristão, inflamado pelos discursos violentos dos intelectuais iluministas, como Voltaire e sua trupe, os revolucionários de 1789 promoveram uma intensa descristianização à força da sociedade francesa. A Assembleia Nacional confiscou toda a propriedade da Igreja e suprimiu todos os conventos e monastérios. Quase todas as igrejas foram tomadas e saqueadas. Várias catedrais e capelas antiquíssimas, joias da arquitetura gótica, foram completamente destruídas. Imagens religiosas foram decapitadas, vandalizadas e reduzidas a pó. Em cinco anos, sobraram algumas poucas igrejas abertas em toda a França. O Culto da Razão e do Ser Supremo foi estabelecido como religião civil do Estado francês. O calendário gregoriano foi abolido, bem como o domingo como dia de descanso. Todas as localidades com nomes religiosos foram rebatizadas e todas as festas de santos foram proscritas. A Constituição Civil do Clero obrigava todos os padres a prestar juramento ao governo e não ao Papa. Todos os clérigos que se recusassem eram executados ou exilados na Guiana. Cerca de trinta mil sacerdotes foram exilados e outros milhares foram mortos. Em algumas cidades, estabeleceu-se como espetáculo público amarrar padres e freiras e afogá-los. Criou-se o crime de fanatismo, pelo qual aquele que praticasse a sério a fé católica se tornava réu de morte. Conventos inteiros de religiosas foram guilhotinados por esse crime (as mais famosas são as mártires Carmelitas de Compiègne).
Os habitantes da região da Vendeia, ao sul do Vale do Rio Loire, se insurgiram contra tais atrocidades. Um grupo exclusivamente popular, composto por camponeses, se recusou a se alistar no exército revolucionário e instaurou ali um regime de fidelidade a Deus e à monarquia. O Comitê de Salvação Pública enviou maciças tropas com a ordem de destruir a Vendeia. Toda a região foi arrasada, todas as fazendas e plantações foram dizimadas, as florestas foram incendidas, as vilas foram arruinadas e absolutamente todos os habitantes, inclusive as crianças, as mulheres, os idosos e os doentes, foram mortos. Pode-se, sem exagero, relacionar esse massacre a um expurgo stalinista. Em menos de três anos, Robespierre, o mais sanguinário dos revolucionários, matou mais gente do que a maioria dos mais trágicos eventos da história. Ainda assim, todos somos obrigados a ouvir generosos elogios à Revolução Francesa em salas de aula, num grave insulto à memória dos que a sofreram e num vilipêndio íntimo à fé dos católicos.
III) Kulturkampf. O liberalismo não encontrou terreno muito fértil na formação da Alemanha. Os povos germânicos do norte foram unificados sob a mão de ferro do ditador Otto von Bismarck, nacionalista e centralizador. Mesmo assim, houve, ao menos, uma ocasião em que os representantes do iluminismo alemão fizeram um pacto com Bismarck. Foi na concepção da Kulturkampf, uma política iniciada em 1871 com o objetivo de expurgar a influência política da Igreja Católica na Prússia. Promotores da separação Estado-Igreja e enxergando nos católicos um atraso pré-moderno, os liberais aderiram em peso ao projeto do chanceler e foram a grande base de apoio e de capital político que viabilizou a ação.
A maioria liberal nas Casas Legislativas prussianas aprovou uma série de leis anticatólicas. As ordens religiosas foram expulsas do país, e quase todos os mosteiros e conventos foram fechados; metade dos bispos prussianos foi presa ou exilada; um quarto das igrejas ficou sem sacerdote; metade dos monges e freiras deixou o país; cerca de mil e oitocentos padres foram presos ou exilados; milhares de cidadãos leigos foram presos por ajudar os clérigos; as escolas católicas foram tomadas pelo Estado, e nenhuma instituição religiosa tinha permissão para administrar uma casa de ensino; os tribunais eclesiásticos foram privados de seus poderes disciplinares sobre o clero, em favor dos tribunais civis; a formação de padres passou a ser controlada pelo Estado, que lhe definia o currículo.
A situação foi mais delicada na Polônia, alvo particular do ódio nacionalista de Bismarck, bem como do desprezo dos liberais, para quem esse povo católico era a encarnação da inimizade ao progresso. Ali, a Kulturkampf não cedeu mesmo após o seu fim oficial em todo o Estado prussiano, mantendo-se um programa institucional que previa a remoção de poloneses de todo o cargo público, o controle do clero e a germanização de todo o ensino nas escolas públicas. As autoridades prussianas prenderam cento e oitenta e cinco padres poloneses, inclusive o arcebispo primaz, e exilaram centenas de outros, e os poucos restantes tinham que exercer seu ministério na clandestinidade. A nação polonesa vivia subjugada entre essa política prussiana e, em sua porção oriental, o arrocho do czar russo, que impunha medidas semelhantes. O governo cesaropapista russo se concertava diplomaticamente com Bismarck e recebia a aprovação dos liberais. Nada como defender a liberdade enquanto aplaude uma tirania clerical sufocar a independência religiosa de uma nação inteira...
IV) A Revolução Mexicana. Outro xodó da historiografia é a Revolução Mexicana, com sua Constituição de 1917. Celebrada como a continuação da Revolução Francesa, tal Carta Magna foi a primeira no mundo a prever os direitos sociais. Assim como a tomada da Bastilha fora o marco inicial dos “direitos de primeira geração”, o México saía na vanguarda dos “direitos de segunda geração”. Em verdade, a Revolução Mexicana guarda uma continuidade com a Francesa também na sua faceta sangrenta. “Os direitos sociais” esconderam tantos litros de sangue inocente quanto os seus primos civis e políticos.
A legislação mexicana já possuía um toque anticlerical herdado da revolução liberal de 1857. A Constituição de então atacava os direitos de propriedade e as posses da Igreja. A Lei Fundamental de 1917 inaugurava um anticlericalismo radical, realmente inspirado no terror francês. Foi proibido que membros da Igreja exercessem atividades de ensino; a estrutura eclesiástica foi posta sob o controle do Estado; toda a propriedade da Igreja foi posta à disposição do Estado; as ordens religiosas foram proibidas; foi proibida a entrada de padres estrangeiros; foi dado poder a cada estado de limitar o número de sacerdotes autorizados naquela região; negou aos padres o direito de votar ou de exercer função pública; vedou-lhes oficiar cerimônia religiosa ou vestir as vestes clericais fora dos locais de culto; denegou a qualquer cidadãos o direito a julgamento por violação de qualquer dessas normas.
Em 1924, chegou ao poder o fanático ateu Plutarco Elías Calles, que acrescentou sua própria legislação anticlerical. Proibiu de sacerdotes de trabalharem sem uma licença prévia do Estado. Oficiais estaduais começaram a limitar o número de padres autorizados, de modo a deixar vastar regiões sem clérigos; todos os bens da Igreja foram expropriados; todos os bispos foram exilados ou permaneceram escondidos; centenas de sacerdotes foram mortos. Calles aplicou todas as leis anticatólicas com perfeito e doentio rigor. Os católicos se rebelaram contra o jugo do regime e deram origem à chamada Guerra dos Cristeros, contra o governo. As tropas anticlericais trataram de exterminar tão impiedosamente quanto possível os cristeros, matando até mesmo as crianças, depois de instar cada um, sob tortura, a abandonar a fé. Foi, talvez, a maior produção de mártires da história da Igreja (alguns famosos já foram elevados aos altares, com o menino José Sánchez del Río, de apenas quatorze anos, morto barbaramente pelos soldados depois de se recusar a apostatar). Cerca de trinta mil cristãos foram mortos no conflito. De quatro mil e quinhentos padres que trabalhavam no país, depois da guerra sobraram apenas trezentos e trinta e quatro, estando os demais entre foragidos, exilados e executados. A legislação de supressão da Igreja continuou a viger. Até 1940, ela não existia juridicamente; não tinha quaisquer propriedades; não tinha escolas, conventos ou mosteiros; não podia incorporar clérigos estrangeiros; não podia ser representada judicialmente; os padres não podiam trajar as vestes clericais ou votar; eram proibidas as cerimônias religiosas públicas. Por sua atitudes contra a Igreja Católica, Calles foi honrosamente condecorado pela maçonaria.
V) Guerra Civil Espanhola. O discurso oficial sobre a Guerra Civil Espanhola desenha Franco como o grande vilão da história. Franco é o caso espanhol do ditador fascista (análogo a Mussolini ou a Hitler), que lutou contra os “iluministas” “republicanos”, que buscavam “modernizar” a Espanha, tirando-a do Antigo Regime e soprando sobre ela o frescor das ideias vanguardistas. No máximo, alguém mais “isentão” reconhece que “houve erros dos dois lados”.
A história, porém, não é bem assim. A Segunda República ascendeu ao poder invocando os valores da liberdade e se inspirando nas revoluções iluministas na França e nos EUA, apoiada pelos notáveis intelectuais liberais do país na época e vista com bons olhos pelas mais finas democracias liberais do mundo, na América e na Europa, prometendo reformar a política nacional rumo à modernidade e à democracia. Como sempre, os belos jargões liberais são invocados para significar implicitamente a destruição violenta das instituições tradicionais, particularmente a Igreja Católica. A Segunda República assumiu um ódio anticlerical traduzido na edição gradativa de leis de perseguição: a ordem dos jesuítas foi dissolvida; toda a propriedade da Igreja foi nacionalizada; foi proibido o ensino religioso nas escolas.
A perseguição pela violência explícita e gratuita começou nas Astúrias em 1934, quando trinta e sete padres, religiosos e seminaristas foram sumariamente assassinados por agentes do governo. Cinquenta e oito igrejas foram destruídas naquela localidade. A partir de 1936, os assassinatos públicos, sem justificativa nem julgamento, se tornaram política oficial. Em quase toda a Espanha, a polícia caçava nas ruas membros do clero e pessoas católicas em geral e executava sumariamente. Quem fosse revistado e pego com um terço no bolso podia ser imediatamente abatido. Casas de famílias reconhecidamente praticantes eram invadidas, e as pessoas eram presas ou mortas. Os que não eram executados imediatamente eram jogados em prisões e submetidos a horrendas condições, comiam excremento, não tinham acesso a mínimas civilidades sanitárias, entocavam-se multidões em espaços diminutos, onde mal podiam se mover, e as execuções aleatórias mantinham o pavor e a tortura psicológica constantes. Isso, repita-se, era feito pela própria autoridade pública, não por grupos guerrilheiros independentes. Dezenas de milhares de pessoas foram mortas nessas circunstância. A maior parte dos óbitos do período não se deu nas batalhas da guerra civil, mas nessas execuções sumárias no meio da rua. Mosteiros, conventos e igrejas foram profanados e queimados. O número total de crentes mortos varia entre cinquenta e cem mil (dos quais cerca de sete mil clérigos, incluindo alguns dos principais bispos espanhóis).
Franco era a única liderança capaz de concentrar em torno de si uma frente ampla o suficiente para combater os mafiosos republicanos. Nesse cenário, os cristãos foram obrigados a aderir a Franco na guerra. Não se tratou aqui de fazer um “cálculo pragmático” ou de escolher o “mal menor”. Era muito mais radical do que isso: Franco ou morrer. Não “Franco ou morrer porque as políticas econômicas da esquerda acabariam levando à miséria e blablablá...” mas, diretamente, “Franco ou morrer imediatamente, exterminado pela polícia, em qualquer lugar, a qualquer momento”. Nem em seus piores momentos a repressão da ditadura franquista fez coisas semelhantes às que se viram no terror republicano.
O liberalismo é o totalitarismo da tolerância.
Esse artigo foi escrito pelo Gustavo França. Ele ministrará um curso excelente sobre "O que é o Direito?", vale a pena conferir (clique aqui).
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