domingo, 15 de outubro de 2017

A divisão do Reino: as CEBs e as celebrações da Palavra



Um reino dividido contra si mesmo pode subsistir?

A resposta de Nosso Senhor é negativa (Mc 3, 24). Um reino dividido contra si mesmo não pode subsistir. Foi por essa razão que, no Horto das Oliveiras, o Salvador, entre as gotas de sangue que pingavam de sua sagrada face, implorou: Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um (Jo 17, 11).

Adianto que a questão que tratarei tem um pano de fundo teológico, mas é mais prática, ‘pé no chão’. Outro alerta: vou expor a minha realidade local diante das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base, se aproveitar e fizer sentido à sua, ótimo; se não, paciência. E não vai ser uma visão otimista, embora adoraria fazer um prognóstico positivo, mas, infelizmente, o quadro presente dá sinais de que a coisa não vai bem e tende a piorar.

Em primeiro lugar, o modo como as CEBs se estruturaram ao redor da “Celebração da Palavra” com distribuição da Eucaristia é um tiro no pé da própria Igreja. Por quê? Não é um exagero? Não, não é. A “celebração da Palavra” tenta fazer uma caricatura da Santa Missa e, ao fim e ao cabo, a ‘lógica’ por trás é exatamente essa, inclusive a ‘liturgia adaptada’ se inspira aí e, às vezes, não faz os ajustes necessários entre o leigo e o padre, que são os falantes [1].

Antes de prosseguir com a minha opinião, em que o leitor pode achar pertinente ou não, aderindo ou não a ela, todavia, se é o Magistério quem fala, a situação é outra. Vejamos qual é a posição da Igreja sobre o tema:

Na Instrução Redemptionis Sacramentum, o parágrafo 164 afirma que “as celebrações dominicais especiais, devem ser consideradas ABSOLUTAMENTE extraordinárias” e o parágrafo 167 arremata:

“«De maneira parecida, não se pode pensar em substituir a santa Missa dominical com Celebrações ecumênicas da Palavra ou com encontros de oração em comum com cristãos membros de outras [...] comunidades eclesiais, ou bem com a participação em seu serviço litúrgico». Se por uma necessidade urgente, o Bispo diocesano permitir ad actum a participação dos católicos, vigiem os pastores para que entre os fiéis católicos não se produza confusão sobre a necessidade de participar na Missa de preceito, também nestas ocasiões, a outra hora do dia.”

Está mais do que cristalino que essa confusão já acontece, não é? A Missa é rebaixada e nivelada à celebração nas CEBs. Prossigo.

 “Como temos poucos padres e precisamos difundir o Evangelho, releguemos ao leigo que pós-Vaticano II assumiu um papel relevante na evangelização”, diriam os adeptos. Aliás, prosseguem eles, “é uma forma de tornar a Igreja mais acessível e menos ‘elitizada’”. [2]. Ou: “Ah, o autor desconhece que há previsão canônica para esse tipo de atividade” [3], os mais rígidos rebateriam.

É importante ler as notas para compreender o texto – eu sei que é chato, porém é uma chatice necessária. Responderei a essas questões.

a) Mas quais são as consequências das CEBs como as conheço? A Igreja gasta rios de dinheiro para formar padres. E como, infelizmente, o deus mamon tem ganhado espaço nos corações, inclusive do clero (é trágico, eu sei e não sabe quanto lamento que seja assim!), considero que seja oportuno frisar: a Igreja gasta rios de dinheiro para formar padres que, em tese, receberam estudo para conhecer a verdade (o casamento da filosofia com a teologia) e sabem transmiti-la ao povo, acaba jogando isso pela janela quando “delega” dominicalmente a um leigo a organização da celebração em concorrência com a Santa Missa. Por exemplo, onde moro a Santa Missa “compete”, simultaneamente, no mesmo horário e no centro da cidade com mais de dez comunidades com suas respectivas celebrações. (a competição do ponto de vista espiritual inexiste, por isso as aspas, um montículo não concorre com uma montanha);

b) Por que a Igreja joga pela janela o gasto feito com os padres? Simples. Se a formação foi instituída, desde o Concílio de Trento, para moralizar e organizar o clero, a instituição vulgarizada da celebração repete o passado no sentido de que a propagação do Evangelho é terceirizada para o laicato sem que este tenha condições de fazê-lo de maneira adequada. Sofistiquei a resposta. Em outras palavras, transfiro a alguém que não tem o devido preparo e ‘poupo’ o preparado.

c) Por que o leigo, em geral, não pode assumir essas funções? Superando o debate que é o próprio do Magistério que estabelece a excepcionalidade (a exceção) como já expus (releia também a nota de rodapé número 3). Agora explico o porquê o leigo não tem condições de assumir essas funções como regra.

1 – Formação. Na maioria dos casos, os leigos não têm uma formação adequada (não estou dizendo que há intenção de ficarem ignorantes nos assuntos religiosos, é a realidade, lembram?);

2- Espiritualidade. O leigo não preparou seu espírito durante anos ‘enclausurado’ no seminário numa vivência de comunidade, com orações e num ambiente ordeiro [4];

3- Tupiniquim. A situação se agrava no Brasil por ser um país prodigioso em analfabetismo funcional. Pesquisa da UnB revelou que mais de 50% dos universitários são analfabetos funcionais, imagine a composição dos ministros da Palavra que em sua maioria não tem o ensino superior [5]. Em outras palavras, se nem os universitários estão habilitados a ler e escrever com justeza, quem dirá os não universitários num contexto em que mais de 70% da população não abriu um livro sequer em 2014. Outra pesquisa, são ‘dados’ reais. A realidade nua e crua. Lembrando: Bíblia significa livros (do grego “biblion”). 73 livros para ser exato. Uma biblioteca muito modesta.

4- Tempo. A vida moderna suga nossas horas e, às vezes, achamos que um dia é pouco para cumprir nossas atividades. Sem contar as distrações que redes sociais, séries, programas de TV etc. absorvem. O padre é separado do povo para o povo. Essa ‘separação’ inclui tempo consigo, em comunidade e com Deus. Por isso ele não trabalha como um profissional mundano, embora as ‘férias coletivas’ dadas em Janeiro sinalizem o contrário (evito a polêmica por hora). O leigo dispõe de pouco tempo. Exigir que supra uma função que deveria ser do sacerdote é uma injustiça. O leigo deve anunciar o Evangelho, em primeiro lugar, na Igreja doméstica (família) a partir daquilo que recebeu da ‘Igreja pública’; além de ser ‘sal e luz’ no mundo, no seu trabalho, no seu dia a dia. Estou falando de prioridades, não de esquemas fechados.

d) Por que os bispos/padres favoráveis ao modelo atual não percebem a furada em que se meteram? ‘Foge da dor e busca o prazer’. É assim que opera nossas reações muitas vezes. É claro que quando o leigo assume atividades essencialmente ligadas ao sacerdócio, o padre fica aliviado, desocupado. Será totalmente verdadeiro isso ou apenas parcialmente? Pensem na multiplicação de ‘picuinhas’ que dezenas de comunidades espalhadas na mesma cidade geram. Fulano da Comunidade A disse isso ou aquilo, o da B fez o oposto e blá, blá, blá (fico cansado só de imaginar). Um resultado que a CEB propõe – reduzir a carga laboral do padre – no lugar de ser uma solução, acaba multiplicando os problemas. Tem a ver com o que Nosso Senhor falou: quem procurar salvar a sua vida, vai perdê-la (Mc 8, 35). Quem procurar se livrar da dor, irá aumentá-la.

e) Como fica o rebanho do Senhor? Ainda que não tenha sido um resultado previsto, o fato de colocar a celebração da Palavra como regra, gera uma equiparação entre esta e a Santa Missa. Essa equiparação é uma erva daninha, aliás, é o joio. Sabemos bem quem cultiva esse espécime. Por quê? A resposta é simples. Afasta as ovelhas do convívio com o pastor e, como visto na letra C, coloca um cego para guiar outro cego, melhor dizendo, uma ovelha para guiar outra ovelha. Mas quem defende a ambas do lobo? Eu sei: vão dizer que há muitos padres que são lobos em pele de cordeiro. De qualquer modo, é importante que as ovelhas estejam em contato com o pastor [6]. Como vão cumprir o pedido do Papa de que o pastor tenha o cheiro das ovelhas, se o próprio pastor colocou cada grupo em um canto diferente? Quando o próprio pastor aprova a ideia de que separadas, engordam mais? Repito: ainda que o pastor seja uma réplica de Judas, é necessário que as ovelhas estejam ao redor dele, porque até uma pessoa má, com coração de pedra, faz coisas boas às vezes e, nas suas torpezas, pode acertar sem vontade, afinal, passou anos ouvindo coisas certas na sua formação (volte à nota 4), e, numa decisão ou outra, pode agir corretamente (já dizia Machado de Assis que relógio parado acerta a hora duas vezes). Sem contar que existe a graça do estado clerical em que Deus tenta driblar esses pecados e vícios para que sua ovelha não pereça [6]. Não nos esqueçamos: Jesus é o Bom Pastor. Bom. Bom. Bom. Entenderam? Ele deixa 99 ovelhas farisaicas para buscar umazinha, a perdida, a publicana, toda ferida e estrepada, mas que o procura com sinceridade e amor. “Oh, a bondade de Deus é indescritível!”, diriam os santos.

f) O quê o autor humildemente sugere? A solução é simples e não se realiza sem sofrimento. Em primeiro lugar, precisamos quebrar o costume torto que se formou AOS POUCOS para não escandalizar ninguém. Também não adianta fazer uma mudança drástica e danosa aos espíritos mais apegados. O que tem que ser feito com urgência: dar a Deus o que é de Deus.

1- TIRAR todas as celebrações da Palavra dos locais em que há meios de se ir à Santa Missa com relativa facilidade como na cidade (não podemos colocar um fardo pesado nos outros) do DOMINGO. Os antigos já sabiam: domingo é dia de Missa.

2- REMANEJAR as celebrações da Palavra para outro dia da semana para que percam a importância indevida que receberam (quebra de costume) como o sábado. Seria “o dia” da celebração para desocupar as pessoas para o Domingo.

3- MANTER aos domingos as celebrações da Palavra nos lugares distantes como distritos e zonas rurais;

4- Como consequência, os padres precisariam celebrar mais de uma Missa na Igreja Mãe (por exemplo: manhã e noite no domingo ou sábado à noite com liturgia dominical e domingo de manhã) para que os mais variados tipos de ovelhas afluam ao aprisco com certa acessibilidade de hora;

5- Deixar as CEBs instaladas para: catequeses, encontros formativos, círculos bíblicos, festividades dos padroeiros (ótima ocasião para fortalecer o espírito da CEB), missa mensal para o padre animar o trabalho comunitário etc. Essas ações funcionariam como uma espécie de isca naquela realidade menor para um horizonte maior, mais nobre e belo; E quem sabe usar os salões para festas e eventos com orientações religiosas, (almoços comunitários), tudo isso é bom e ‘agrega valor’; Não nos esqueçamos de que Nosso Senhor foi acusado de ‘glutão’, embora Ele fosse para os lautos banquetes, não com o intuito de se fartar de comidas e bebidas deliciosas, e sim, para “pescar” os pecadores que estavam lá se fartando de comidas e bebidas deliciosas. Imaginem os nós nas gargantas com pedaços de carne durante um discurso instigante de Jesus? Lágrimas misturadas aos vinhos... Devia ser engraçado e inspirador.

5- Aproveitar depois os ministros que ficariam “ociosos” para a formação e distribuí-los nos movimentos/pastorais e dedicar mais tempo e rigor aos ministros necessários (zonas rurais) para suprir as deficiências que, muitas vezes, são maiores neles dos que estão integrados na área urbana. Em miúdos, dar atenção a quem precisa de mais atenção.

Um efeito colateral não percebido do excesso de ministros é o esvaziamento das pastorais. Geralmente, quem assume o ministério da Palavra tem espírito de liderança e poderia fazer um bem enorme coordenando ou atuando ativamente numa pastoral/movimento, porém, é “abduzido” para a função com mais status (não podemos ignorar como a vaidade orienta nossas escolhas, mesmo que justas) e, ao mesmo tempo, mais fechada em si mesma que é a celebração. É possível que pense que ao “celebrar” em uma horinha já cumpriu seu dever na Igreja e que os outros se mobilizem, porque ele já fez sua parte.

Bom, essa é a minha reflexão para que as coisas melhorem na Igreja. Deixo aqui minha semente e rezo para que caia em terra boa, aquela que produz fruto e que agrada ao agricultor.

Para aprofundar, leia o Diretório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero, clicando aqui.

Notas

[1] Vou superar as polêmicas ao redor de uma concepção equivocada do sacerdócio e da sua centralidade no mistério eucarístico.

[2] Isso não tem nada a ver com o pedido do Papa da Igreja sair de si e ir para as periferias, ok?

[3] Ótimo. Eu sei que existe, mas se vamos recorrer ao Código de Direito Canônico, recorramos à integralidade, não a uma parte conveniente. E se vamos observar as diretrizes magisteriais, que seja in totum (no todo). No entanto, o que vou fazer é exatamente o que critico: ignorarei as disposições oficiais da ‘Igreja Romana’ que não conhece a realidade da ‘Igreja Latina’ (numa insurgência contra o adágio ‘Roma locuta est, causa finita est’, porque não sei se os europeus sabem: a oficialidade não é vista com bons olhos aqui, há até uma antipatia violenta). É um ‘latino’ quem fala a partir de sua ‘realidade’, da sua ‘práxis’. É quase o Éden de alguns teóricos ‘libertadores’, não é? Reivindico a minha legitimidade então. Pois bem. Sigamos.

[4] Estou sendo idealista, perdoem-me, mas é feio dizer que existem hoje métodos de testar a vocação como lançar os vocacionados na ‘cova dos leões’ para ver se querem o ‘mundo’ ou ‘Deus’ e isso é o publicável, há coisas piores... Desculpem-me, mas ouço desde novo que preciso ser ‘crítico’ e estou fazendo o melhor que posso. Quem empreende isso desconhece a natureza humana decaída. Preciso injetar heroína para saber que ela faz mal e só então passar a combatê-la ‘com propriedade’? E se já havia lutas interiores somo mais uma, qual seja, o desejo de voltar a usar a droga? Nem o diabo pensaria em algo tão eficaz para viver corretamente! Parabéns aos reitores!

[5] Talvez seja acusado de elitismo injustamente, mas eu me defendo dizendo que é preciso saber ler e escrever corretamente para entender as nuances que os textos sagrados possuem, são mais camadas de sentido que as da cebola, a menos que queiramos repetir o erro de um pastor protestante que onde estava escrito adúltera (com acento), leu adultera. E adulterou com a fiel “a pedido de Deus” (sic), teve inclusive um dilema se devia ou não, mas era o que pedia a Palavra (sola scriptura). Logo, se não entendo bem a Palavra, como cumpro meu mister?

[6] Se o padre não está em “estado de graça” (comete pecados graves e não os confessa), ao menos, existe a “graça de estado” em razão de seu sacerdócio. O exemplo mais notório é o do Sumo Sacerdote Caifás que, não só tramou o julgamento do Senhor no Sinédrio (pecado gravíssimo, destruindo o “estado de graça”), como também profetizou, devido à graça de estado, que seria melhor que “um só morresse em lugar do povo” (Jo 18, 14). Em outras palavras, os homens, mesmo maus, cumprem a vontade Deus, conscientes ou não disso.

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